quarta-feira, 8 de abril de 2009

Peripécias ibéricas de uma doutoranda em busca de dados para a sua tese sobre a obra astrológica de Ptolomeu

Quase não dá para me reconhecer, mas o importante é a fachada da Universidade de Salamanca. Eu passava por aquelas portas de madeira todos os dias para chegar à biblioteca.


Eu e o Pessoa no Chiado (Lisboa)

por Cristina de Amorim Machado

Fui a Lisboa para tentar desencavar uma tradução portuguesa do Tetrabiblos no período das Descobertas, tendo em vista que esta, além de ter sido uma fase de considerável atividade tradutória, foi também uma época de grande atividade dos astrólogos por lá, já que eram eles que sabiam manusear os instrumentos e as tabelas que foram fundamentais para o desenvolvimento da navegação astronômica.

Como se sabe, nesse tempo não havia a distinção que há hoje entre astronomia e astrologia, tratando-se, pois, de uma “astrolomia”, termo que encontrei no texto Esmeraldo de situ orbis, escrito pelo navegador português Duarte Pacheco Pereira, no início do século XVI, e que me parece assaz adequado para denominar essa ciência com dois aspectos que vigorou desde a antiguidade até o advento da ciência moderna.

Pois bem, depois de três meses chafurdando na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e na Biblioteca Pública de Évora (os três grandes polos portugueses de textos antigos), e de só ter encontrado as edições latinas e gregas dos séculos XV e XVI (o que foi bastante emocionante), acabei apelando ao meu plano alternativo, que era procurar a tradução espanhola do século XV (na Biblioteca Nacional de Espanha, em Madri), o que não foi menos meritório, afinal, a expansão marítima foi uma empreitada igualmente de portugueses e espanhóis.

Dito e feito. Lá fui eu de mala e cuia primeiro para terras salmantinas, onde fiquei um mês fazendo curso de língua e cultura na histórica, monumental e belíssima Universidade de Salamanca. Essa experiência foi indescritível: há lá muito material para se estudar tanto tradução quanto astrologia. Sem falar evidentemente na emoção de pisar nas mesmas pedras, respirar o mesmo ar, ver o mesmo céu e sentir na pele o mesmo frio e as mesmas brumas de alguns dos meus objetos de estudo. Teve um momento que foi especialmente marcante. Tinha encerrado o meu dia de imersão nos manuscritos e textos antigos na biblioteca histórica. Já estava escuro, porque eu costumava sair de lá por volta das oito da noite. Quando eu bati a porta (e que porta!) da biblioteca e me vi ali sozinha, andando pelo maravilhoso claustro da universidade (sempre extasiada, querendo registrar tudo na minha memória), e embalada por um clima de fraca iluminação, acabei viajando no tempo. Por aqueles corredores transitaram Pedro Nunes, Abraão Zacuto, Cristóvão Colombo e cia. ltda. Isso sem falar de todos os historiadores da ciência que, com seus escritos sobre essa época, têm me dado pistas preciosas. Senti vivamente a presença de todos eles e também dos anônimos que, de alguma maneira, estão me soprando essa história. Agradeci-os emocionada, saí do prédio, olhei para o céu e, rindo comigo mesma, segui pelas movimentadas ruas dessa simpática cidade universitária.

No segundo fim de semana, fui a Madri. Tinha pouquíssimo tempo para trabalhar: a noite de sexta-feira e a manhã de sábado. Mas isso foi suficiente. Depois de passar pelo enorme sistema de segurança da Biblioteca Nacional, que me tomou um tempo enorme, e de conseguir chegar à área de reservados, rapidamente preenchi o pedido e entreguei ao bibliotecário. Em alguns minutos lá estava ele posicionando uma almofada na minha mesa. Pouco depois, lá vinha ele com o livro. Tive que me conter para não chorar: era um Tetrabiblos do século XV, traduzido para o castelhano por Juan Gil. Não quis saber de mais nada, fiquei ali atracada com ele até me botarem para fora. No dia seguinte tomei as providências para fazer algumas cópias (que ficaram péssimas, mas era melhor que nada), e também mandei digitalizar as primeiras páginas, que ficaram ótimas. Missão cumprida. Depois dessa enxurrada de emoções, voltei a Salamanca e, duas semanas depois, a Lisboa.

Nessa minha aventura na Península Ibérica, aproveitei todo o tempo possível para levantar dados sobre a tradução astrológica por lá nesse período, o que significou examinar uma série de catálogos de livros antigos, além dos ditos-cujos evidentemente, e estudar muita história da ciência e da tradução, para tentar operar essa interseção entre astrologia, ciência e tradução, que não é trivial. Ademais, também tomei como missão fazer a catalogação das obras astrológicas antigas que há por lá, a fim de ter uma ideia geral desse acervo. Esse trabalho está apenas iniciado, há muito o que fazer ainda. Por enquanto, temos apenas uma amostra. A análise dessa produção bibliográfica, avaliando o que foi produzido em português e em outras línguas, nos informa sobre o papel do cânone astrológico, da tradução e também da prática da astrologia em Portugal nos quinhentos e seiscentos.

Dito isso, passo agora à astrologia em Portugal hoje, que não é propriamente o meu objeto de estudo, mas que considero importante para a montagem desse quadro. Vou me ater a dois empreendimentos astrológicos que se encontram hoje em Lisboa, que me parecem bastante elucidativos sobre a realidade astrológica portuguesa, mas principalmente pela seriedade, pelo compromisso com a astrologia e pelo aporte à minha pesquisa que eles oferecem: a Biblioteca Sadalsuud e a Academia de Estudos Astrológicos. De ambos recebi informações preciosas não só sobre assuntos diretamente relacionados à minha tese, mas também sobre a prática astrológica lusitana atual.

Vale lembrar que percorri os muitos sebos e livrarias da cidade, o que serve de termômetro para avaliarmos a quantas anda uma área de conhecimento num determinado lugar, e o que vi foi pouco mais que desolador. Assim como no Rio de Janeiro, e talvez se possa generalizar mais e considerar o Brasil como um todo, raras são as livrarias que tratam a astrologia com dignidade, reservando-lhe uma seção ou pelo menos uma prateleira. De maneira geral, encontramos os livros de astrologia misturados com outras coisas, rotuladas normalmente de auto-ajuda, esotéricos ou algo do gênero. Claro que há toda uma questão editorial também aí por trás, mas este é um problemão que eu não vou desenrolar por aqui.

Tanto a Academia quanto a Sadalsuud se reconhecem como propostas diferentes da maioria de seus conterrâneos, principalmente pela seriedade (o que não implica ser chato), pelo rigor acadêmico (o que não significa ser arrogante) e pelo compromisso com a astrologia tradicional. Nesse aspecto talvez se possa generalizar também, já que, no Brasil, o interesse pela astrologia antiga, pela sua história e por seus fundamentos é muito reduzido. De maneira geral, tanto no Brasil, quanto em Portugal e no resto do mundo, a astrologia psicológica e as escolas que seguem as diretrizes de Dane Rudhyar têm muito mais adeptos. É importante destacar, então, que há atualmente alguns projetos de estudo, divulgação e tradução de textos helenísticos e medievais, além dos portugueses já citados: Gracentro (http://www.gracentro.com/), Escuela de Traductores de Sirventa (http://www.geocities.com/Athens/Atrium/5989/index2.html), Project Hindsight (http://www.projecthindsight.com/) e CURA (http://cura.free.fr/), sendo que o CURA não se atém exclusivamente à astrologia tradicional. ARHAC e Ascella são duas editoras que publicaram alguns textos antigos importantes, mas que, aparentemente, interromperam sua produção.

Voltando a Portugal, os livros da Biblioteca Sadalsuud (http://www.bibliotecasadalsuud.com/) são traduzidos por uma só pessoa, para que, segundo as palavras da própria tradutora-editora em recente troca de e-mails, “não haja qualquer possibilidade da alteração de uma só vírgula, de tal maneira é sensível o texto na sua interpretação”. Seus critérios são tão rigorosos que, para ela, “qualquer tradutor que não tenha um mínimo de 20 anos de pesquisa astrológica reconhecida internacionalmente ao mais alto nível, com provas documentais apresentadas e obra publicada, não tem qualquer capacidade para traduzir estes textos. E, para começar, há que ter passado por todos os exames estabelecidos pelas escolas astrológicas internacionais”. Ademais, seus exemplares são encadernados um a um, pedidos por e-mail e depois recebidos pelo correio convencional, isto é, o trâmite é inteiramente on-line, pois a editora não conta com uma instalação física. Todos os livros têm ISBN e são “depósito legal”, ou seja, há um exemplar de cada um depositado na BNP. Essa editora se dedica exclusivamente à tradução de textos astrológicos antigos, tomando como base as traduções inglesas. O Tetrabiblos, por exemplo, foi traduzido a partir da tradução do grego para o inglês, de 1940, feita por F. Robbins, responsável por uma das edições críticas dessa obra. No site da Sadalsuud, encontramos logo na primeira página a sua motivação: “Na esperança de que, no futuro, a Astrologia Clássica venha a ser estudada nas Universidades de língua portuguesa, é criada a Biblioteca Sadalsuud, que se ocupa da compilação e tradução dos textos clássicos, os compêndios indispensáveis para qualquer estudante desta Arte. O intuito é a expansão deste conhecimento [...]”. Acrescente-se a isso o seu interesse e longo tempo de estudo da obra de William Lilly, e a sua preocupação em tornar aquele inglês do século XVII mais digerível para o estudante português atual. Sobre a importância do cuidado no tratamento das obras antigas, nas suas próprias palavras: “Se não houver um domínio absoluto e rigoroso nos dois campos (o do idioma e o astrológico) basta uma vírgula fora do lugar para alterar por completo o sentido da frase, e a astrologia clássica medieval, ao contrário da contemporânea de vertente mais psicológica, depende da obediência mais absoluta às regras e aos cálculos, visto que o seu intuito é determinar acontecimentos passados e prognosticar os futuros com data e hora.” Além do Tetrabiblos, há várias outras obras já traduzidas para o português, todas devidamente apresentadas no site. No caso da obra de Ptolomeu, a apresentação se baseia na ótima introdução feita por Robbins na sua edição crítica. As outras obras disponíveis são: Astrologia cristã, de Lilly; Anima astrologiae, de Bonatus e Cardanus; Matheseos libri VIII, de Firmicus; Astrologia horária, de Simmonite; Carmen astrologicum, de Dorotheus; A enciclopédia da astrologia, de DeVore; Mikropanastron, de Partridge; Elementos da arte da astrologia, de Al Biruni; O profético Merlin, de Lilly; Astrologiae gallicae, de Morin; O julgamento astrológico das doenças, de Culpeper; Livro dos julgamentos das estrelas, de Ben Ezra; Merlini anglici ephemeris, de Lilly; e Collectio geniturarum, de Gadbury.

O encontro com Helena Avelar e Luís Ribeiro, da Academia de Estudos Astrológicos (http://www.academiadeastrologia.com/) foi muito bom. Além de ser um casal deveras simpático, eles vivem exclusivamente da astrologia tradicional, à qual se dedicam de corpo e alma há mais de 10 anos, na forma de consultas, cursos, palestras, pesquisa e livros. Ambos têm formação exemplar, espírito crítico, vocação para ensino e pesquisa, e profundo conhecimento de astrologia e matérias afins. Senti-me bastante à vontade com eles, em sua casa, onde, na sala, funciona a Academia, local em que atendem, promovem pequenas palestras e workshops (até 20 pessoas), e oferecem o curso de formação em astrologia, com duração de três anos, para o qual contam com uma nova turma de 10 a 15 alunos a cada ano. Achei o número excelente, sobretudo se considerarmos as dimensões de Portugal e o público-alvo, que é naturalmente restrito, afinal, trata-se de um curso que se propõe a ser investigativo, em moldes acadêmicos e com dedicação à astrologia tradicional. Aos incautos, isto já aparece em destaque na página inicial do site da Academia: “Investigação, divulgação e ensino da tradição astrológica”. Dos três títulos publicados por eles pela Editora Pergaminho, Vamos falar de astrologia (2003), Astrologia real – a história de Portugal à luz da astrologia (2004) e Tratado das esferas (2007), este último, que, segundo o site da Academia, “é o primeiro livro inteiramente dedicado à Tradição Astrológica em língua portuguesa e escrito em função das necessidades pedagógicas dos estudantes actuais”, é o que serve de material de apoio do curso, que recentemente ganhou uma versão on-line em 12 lições. Também conversamos bastante sobre a astrologia brasileira, sempre comparando com a portuguesa. Eles parecem ter uma boa noção da diversidade da astrologia no Brasil, sobretudo por causa das suas dimensões, e já escreveram na Constelar. De maneira geral, entretanto, eu diria que a integração luso-brasileira em astrologia é praticamente nula, ou seja, os astrólogos e o público em geral em Portugal sabem tanto da astrologia no Brasil quanto, no Brasil, se sabe da astrologia em Portugal, ou seja, quase nada. Quanto à relação com o meio acadêmico, apesar do meu entusiasmo, tendo em vista as boas experiências que tive até agora no Brasil e em Portugal, eles se mostraram um pouco surpresos, mas relataram que, tanto aqui quando no resto da Europa (eles costumam participar de congressos internacionais), a astrologia, mesmo quando tem uma produção séria volumosa, e a Inglaterra é um exemplo disso, acaba sempre num lugar mais independente, como é o caso deles e da Sadalsuud aqui em Portugal, do Patrice Guinard, que está à frente do Projeto CURA (França), e que se autodenomina um “independant scholar”, e também da Faculdade de Astrologia, de Londres, que é, na verdade, uma já quase setentona escola de astrologia. Animadíssimos com o trabalho, preocupados com a formação do astrólogo de hoje e conscientes de que o tempo é curto para dar conta de tudo, pareceram satisfeitos de saber da minha existência, assim como eu também adorei saber que eles existem. É curioso como, apesar dos contextos bem diferentes que nos produziram, conseguimos encontrar tanta coisa em comum. Decerto que outros encontros virão, já falamos num cafezinho qualquer hora dessas.



Todo esse movimento me fez lembrar de uma série de experiências com a astrologia que já tive desde os tempos da Astroscientia, onde, pelas vibrantes aulas da Carla (que na época usava o sobrenome Vital Brazil), Beth Costa, eu e mais alguns poucos felizardos fomos apresentados à astrologia tradicional. Encontrar nossos pares é sempre muito bom, seja ali na esquina, em outro bairro, cidade ou estado, como até então tinha sido o meu caso com a Academia Celeste, a Constelar, a Astroletiva e a Confraria dos Astrólogos Andantes. Nessa troca transatlântica só muda mesmo o endereço, porque, da mesma forma, todos nós saímos ganhando, principalmente a astrologia.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sempre é um prazer ler seus textos , mesmo para aqueles que, como eu, são leigos no assunto.