parte 1
apresentado no curso de Filosofia da Religião ministrado pela professora Clara Acker na UFRJ no segundo semestre de 2007.
para Adalgisa Botelho, pela observação quase que premonitória dada no início. Para Cristina Machado, pelo apoio e amizade dados durante. Sabe lá o que será do fim.
INTRODUÇÃO
Atrás da literatura e cultos da Babilônia e Assíria, atrás das lendas e mitos, atrás do Panteão e das crenças religiosas, atrás inclusive dos escritos que parecem ser meramente históricos, há uma concepção astral do universo e de seus fenômenos que afeta todo o pensamento, crença ou culto e que penetra inclusive no campo da atividade intelectual secular, incluindo todos os ramos da ciência cultivados na Antiguidade.Morris Jastrow[1].
A Astrologia por diversas vezes foi chamada de “A Grande Ciência” ou de “A Grande Arte”, e isto ocorreu provavelmente por conta da grandeza do seu objeto de estudo: a relação entre a estrutura celeste e os diversos fenômenos terrestres e, em especial, o lugar que cabe a cada indivíduo dentro do cosmos – o que reconhecemos vagamente pelo nome de destino.
Estes epítetos conferidos à Astrologia talvez estejam relacionados ao fato dela constituir um saber primitivo, isto é, um saber primeiro, original, do qual todos os outros saberes se tornaram derivados desde que o homem começou a se interessar por investigar cada fenômeno em sua particularidade. Investigação - diga-se de passagem – que contribuiu para que se perdesse a noção de um Todo Maior que servia de lastro e fundamento para explicar tudo o que ocorria. Todo Maior, este, que aparecia na maior parte das vezes personificado nos astros e na arquitetura celeste.
Talvez a grandeza devida à Astrologia resida nisto: no fato dela ter composto um saber que se fundamentava na noção de totalidade e de unidade original e, sobretudo, por ter servido, no alvorecer de toda e qualquer civilização, como um critério explicativo, isto é, como uma chave para compreensão de todo e qualquer fenômeno, seja este natural, humano ou religioso. Se assim for, o título de grandeza dado à Astrologia se justifica pelo fato dela ter ocupado um insuspeitável posto de maternidade, com a qual alguns conhecimentos sempre mantiveram laços estreitos de parentesco e filiação; laços tão íntimos que, se forem devidamente estudados, poderão, quem sabe, esclarecer o título que ela carrega, bem como revelar o seu lugar dentro do conjunto dos saberes humanos.
O trabalho que se segue é uma tentativa primeira de analisar tais laços e ver como certos conhecimentos, ao se irmanarem em função de uma totalidade astral, inevitavelmente apontam em direção ao saber astrológico, demonstrando o quanto se torna importante estudá-los todos em conjunto, e isto para o bem da compreensão da própria Astrologia.
OS DEUSES E A RELIGIÃO: A EXPRESSÃO MÁXIMA DA TOTALIDADE
OS DEUSES E A RELIGIÃO: A EXPRESSÃO MÁXIMA DA TOTALIDADE
Tudo está cheio de deuses.Tales de Mileto
A frase acima, atribuída a Tales de Mileto, é uma frase tão intrigante quanto reveladora: nela, percebemos que o pensador jônio estabelece uma relação entre os deuses e tudo. Esta relação, aliás, se torna uma marca que vem a caracterizar o que se concebe como a Filosofia Natural dos gregos, onde as especulações sobre a natureza aparecem imbricadas com especulações de ordem religiosa. É o que testemunhamos, por exemplo, nos diversos fragmentos que nos chegaram desta época remota.
No entanto, nestes diversos fragmentos não há um consenso absoluto com relação aos laços que unem os deuses e tudo, visto que cada filósofo pensou e formulou, a sua maneira, as possíveis relações entre a dimensão Natural e a dimensão Sobrenatural, entre a dimensão Física e a dimensão Metafísica, entre o plano Inferior e o plano Superior que são, todas, variações conceituais criadas também ao longo da história da filosofia para tratar desta possível relação entre Deus e o universo físico.
Não é surpreendente pois que estas relações reapareçam nas discussões que o helenista Walter F. Otto propôs acerca da origem e da natureza dos deuses gregos, bem como do fenômeno religioso, e que a história intelectual humana que se seguiu tratou de travestir e deformar. Seu pequeno livro Teofania[2] adverte e dá uma mostra das diversas confusões conceituais que prejudicaram a elucidação da natureza própria do divino, perpetuando preconceitos que não só turvaram o entendimento do que seja Deus mas, sobretudo, do que seja o Mundo e o Homem.
Para Otto, Deus não pode ser tomado:
· como uma força da Natureza que a ciência depois se encarregou de revelar e traduzir: “Já é tempo de notar a enorme ingenuidade com que os pesquisadores das últimas gerações têm projetado no homem arcaico sua própria imagem. Assim como eles não conseguiam ver nos cultos mais antigos outra coisa que não primitivas operações técnicas, as imagens dos deuses se lhes converteram em pálidas concepções pré-científicas dos fenómenos naturais... (...) Por isso, até o dia de hoje as análises científicas da religião grega estão todas cheias de deuses da vegetação, deuses de fenómenos meteorológicos, deuses do ano, deuses da primavera, deuses do inverno e assim por diante; ou seja, estão repletas de seres que recebem o nome de "deus", mas que em si mesmos nada mais são que uma vontade acrescentada como causadora ao acontecer natural de cada momento. (...) ...primitivamente, um deus nada mais terá sido que uma força especial da natureza cujo conceito, no transcurso dos tempos, "evoluiu" até converter-se em uma pessoa veneranda, tal como os evolucionismos costumam tirar algo do nada como que por arte de prestidigitação. O fato de que, desde o princípio, a idéia de Deus devera pertencer a uma dimensão ontológica distinta de todas as noções de causa e efeito e que jamais teria surgido na mente de um ser humano se o próprio deus não se revelasse como tal não entra em linha de conta para os estudiosos...[3]”
· como uma força diferente e à parte da natureza humana cuja psique, no entanto, só teve que se dar o trabalho de personificá-la: “... os deuses não se manifestam apenas nos fenómenos da natureza e nos acontecimentos fatais; manifestam-se também no que move o homem interiormente, determinando sua atitude e suas açóes. Em um mundo pleno do divino, o homem grego não olha para seu íntimo em busca da origem de seus impulsos e de suas responsabilidades; volta os olhos para a amplitude do Ser, e onde nós falamos de disposição interior, encontra as realidades vivas dos deuses. (...) Neles, as potências da vida que nós conhecemos como estados de ânimo, inclinações, exaltações, são formas ontológicas da natureza divina que, como tais, não dizem respeito apenas ao homem; operam na terra inteira e em todo o cosmo com seu ser infinito e eterno: Afrodite (o feitiço do amor), Eros (a energia amorosa, procriadora), Aidós (a delicadeza e o pudor), Éris (a discórdia) e muitos outros. (...) O que move o homem no seu íntimo é o ser tomado por divinas potências que, como tais, por toda parte atuam. (...) Por isso a justiça, a honradez, a moral etc. podem em qualquer momento mostrar-se envoltas no esplendor do ser divino. Por menos que o consinta nossa mentalidade, no fundo esta ideia tampouco nos é alheia. Também nós representamos a Fé, o Amor e a Justiça como génios celestiais e com certeza não o fazemos apenas por apego a velhas tradições. Chama-se a isto, irrefletidamente, "personificação", em vez de admitir que há muito mais em nossa experiência do que aquilo de que costumamos tomar nota[4]”.
Lendo estes trechos, conseguimos ter uma idéia, mesmo que vaga, do que Otto concebe como divino. Mas em outros trechos da obra ele formula explicitamente tal noção:
“Já para os gregos, como temos dito, tanto quanto os ordenamentos da natureza elementar que nós, ainda conforme a mesma perspectiva nada grega, chamamos de leis, esses princípios são realidades e verdades que têm sua consistência na interconexão das coisas[5]”.
“O divino em cujo seio o homem sabia-se amparado, neste caso não é o "absolutamente outro" em que se refugiam aqueles para os quais a realidade do mundo se acha dessacralizada. Pelo contrário, é o que nos rodeia, o meio em que vivemos e respiramos, que nos comove e ganha forma na claridade de nossos sentidos, de nosso espírito. É onipresente. Todas as coisas e fenómenos falam dele, na hora magna em que falam de si mesmos. Não falam de um Criador nem de um Senhor, e sim do Ser eterno que tomando forma neles se revela[6]”.
“Este saber de uma pletora de deuses que não apenas vive no universo, antes é o universo, nada tem a ver com o panteísmo[7]”.
“Com isso caracterizamos a essência da experiência grega do divino. Mostra-o cada qual a seu modo: Apolo manifesta o ser do universo em sua clareza e ordem, como conhecimento e canto sapiencial, como purificação dos enleios demoníacos. (...) No espírito de Dioniso, vem à luz o mundo em sua forma primeva, como primitivo furor e gozo sem limites. (...) Poderíamos ir adiante, mas essas imagens bastam. Porventura não são elas todas, formas primordiais da vida infinita do mundo, de seus deleites e de seus tenebrosos mistérios? Em verdade, pois, as realidades do mundo outra coisa não são senão deuses, presenças e manifestações divinas. Cada uma delas, em todos os seus níveis e em todas as suas esferas, está cheia do Deus que se revela tanto no elementar como no vegetal e no animal — e no ápice mostra um semblante humano. O que cada um dos deuses patenteia é sempre o mundo em sua totalidade. Pois em cada uma das revelações particulares que eles constituem encerram-se todas as coisas[8]”.
Nestes trechos – sobretudo nas frases por mim sublinhadas – vê-se o quê de algum modo já era anunciado pela boca dos filósofos antigos: que tudo está interligado – querendo dizer com isso que há um todo no qual Deus, Universo e Homem se fundem e se confundem. Dentro desta concepção, o Universo, ou melhor, o plano celeste, não só era a morada dos deuses mas também se revelava como uma espécie de moldura dentro da qual se pintava e se desenrolava toda a história natural e humana. Não é a toa que Otto demarque o céu como um dos três estágios no qual a divindade se apresentava e se manifestava, juntamente com os ritos e a palavra:
“Em primeiro lugar, a posição ereta, voltada para o céu, exclusiva e própria do ser humano. É o primeiro testemunho do mito do céu, do sol e das estrelas, que neste caso não se exprime por palavras e, sim, pela tendência do corpo a erguer-se. Já não lhe reconhemos o significado religioso. Mas dele estamos conscientes no tocante a outras atitudes, a que estamos acostumados desde tempos imemoriais como, por exemplo,o ato de deter-se respeitoso ou fascinado (em latim: superstitio), o ato de erguer os braços e as mãos ou, ao contrário, o de inclinar-se e ajoelhar-se, o juntar as mãos e etc. Na origem, essas atitudes não são mera expressão de uma fé: são a revelação do divino no ser humano, são o próprio mito a manifestar-se[9]”.
Diante do exposto, percebemos que o céu se encontrava investido de potências e que esta investidura parecia ser a própria encarnação da divindade, ambos determinando - céu e deuses - a sucessão de tudo. É como se todo o sistema solar, com sua estrutura específica e com suas revoluções planetárias, pudesse de algum modo determinar todo o desenrolar natural no planeta Terra como, por exemplo, as estações e eventos meteorológicos dos mais variados portes, mas também infiltrar-se em eventos de caráter histórico e psicológico, tais como as pestes e as guerras, bem como na disposição do rei ou do inimigo para agir de determinado modo.
· como uma força diferente e à parte da natureza humana cuja psique, no entanto, só teve que se dar o trabalho de personificá-la: “... os deuses não se manifestam apenas nos fenómenos da natureza e nos acontecimentos fatais; manifestam-se também no que move o homem interiormente, determinando sua atitude e suas açóes. Em um mundo pleno do divino, o homem grego não olha para seu íntimo em busca da origem de seus impulsos e de suas responsabilidades; volta os olhos para a amplitude do Ser, e onde nós falamos de disposição interior, encontra as realidades vivas dos deuses. (...) Neles, as potências da vida que nós conhecemos como estados de ânimo, inclinações, exaltações, são formas ontológicas da natureza divina que, como tais, não dizem respeito apenas ao homem; operam na terra inteira e em todo o cosmo com seu ser infinito e eterno: Afrodite (o feitiço do amor), Eros (a energia amorosa, procriadora), Aidós (a delicadeza e o pudor), Éris (a discórdia) e muitos outros. (...) O que move o homem no seu íntimo é o ser tomado por divinas potências que, como tais, por toda parte atuam. (...) Por isso a justiça, a honradez, a moral etc. podem em qualquer momento mostrar-se envoltas no esplendor do ser divino. Por menos que o consinta nossa mentalidade, no fundo esta ideia tampouco nos é alheia. Também nós representamos a Fé, o Amor e a Justiça como génios celestiais e com certeza não o fazemos apenas por apego a velhas tradições. Chama-se a isto, irrefletidamente, "personificação", em vez de admitir que há muito mais em nossa experiência do que aquilo de que costumamos tomar nota[4]”.
Lendo estes trechos, conseguimos ter uma idéia, mesmo que vaga, do que Otto concebe como divino. Mas em outros trechos da obra ele formula explicitamente tal noção:
“Já para os gregos, como temos dito, tanto quanto os ordenamentos da natureza elementar que nós, ainda conforme a mesma perspectiva nada grega, chamamos de leis, esses princípios são realidades e verdades que têm sua consistência na interconexão das coisas[5]”.
“O divino em cujo seio o homem sabia-se amparado, neste caso não é o "absolutamente outro" em que se refugiam aqueles para os quais a realidade do mundo se acha dessacralizada. Pelo contrário, é o que nos rodeia, o meio em que vivemos e respiramos, que nos comove e ganha forma na claridade de nossos sentidos, de nosso espírito. É onipresente. Todas as coisas e fenómenos falam dele, na hora magna em que falam de si mesmos. Não falam de um Criador nem de um Senhor, e sim do Ser eterno que tomando forma neles se revela[6]”.
“Este saber de uma pletora de deuses que não apenas vive no universo, antes é o universo, nada tem a ver com o panteísmo[7]”.
“Com isso caracterizamos a essência da experiência grega do divino. Mostra-o cada qual a seu modo: Apolo manifesta o ser do universo em sua clareza e ordem, como conhecimento e canto sapiencial, como purificação dos enleios demoníacos. (...) No espírito de Dioniso, vem à luz o mundo em sua forma primeva, como primitivo furor e gozo sem limites. (...) Poderíamos ir adiante, mas essas imagens bastam. Porventura não são elas todas, formas primordiais da vida infinita do mundo, de seus deleites e de seus tenebrosos mistérios? Em verdade, pois, as realidades do mundo outra coisa não são senão deuses, presenças e manifestações divinas. Cada uma delas, em todos os seus níveis e em todas as suas esferas, está cheia do Deus que se revela tanto no elementar como no vegetal e no animal — e no ápice mostra um semblante humano. O que cada um dos deuses patenteia é sempre o mundo em sua totalidade. Pois em cada uma das revelações particulares que eles constituem encerram-se todas as coisas[8]”.
Nestes trechos – sobretudo nas frases por mim sublinhadas – vê-se o quê de algum modo já era anunciado pela boca dos filósofos antigos: que tudo está interligado – querendo dizer com isso que há um todo no qual Deus, Universo e Homem se fundem e se confundem. Dentro desta concepção, o Universo, ou melhor, o plano celeste, não só era a morada dos deuses mas também se revelava como uma espécie de moldura dentro da qual se pintava e se desenrolava toda a história natural e humana. Não é a toa que Otto demarque o céu como um dos três estágios no qual a divindade se apresentava e se manifestava, juntamente com os ritos e a palavra:
“Em primeiro lugar, a posição ereta, voltada para o céu, exclusiva e própria do ser humano. É o primeiro testemunho do mito do céu, do sol e das estrelas, que neste caso não se exprime por palavras e, sim, pela tendência do corpo a erguer-se. Já não lhe reconhemos o significado religioso. Mas dele estamos conscientes no tocante a outras atitudes, a que estamos acostumados desde tempos imemoriais como, por exemplo,o ato de deter-se respeitoso ou fascinado (em latim: superstitio), o ato de erguer os braços e as mãos ou, ao contrário, o de inclinar-se e ajoelhar-se, o juntar as mãos e etc. Na origem, essas atitudes não são mera expressão de uma fé: são a revelação do divino no ser humano, são o próprio mito a manifestar-se[9]”.
Diante do exposto, percebemos que o céu se encontrava investido de potências e que esta investidura parecia ser a própria encarnação da divindade, ambos determinando - céu e deuses - a sucessão de tudo. É como se todo o sistema solar, com sua estrutura específica e com suas revoluções planetárias, pudesse de algum modo determinar todo o desenrolar natural no planeta Terra como, por exemplo, as estações e eventos meteorológicos dos mais variados portes, mas também infiltrar-se em eventos de caráter histórico e psicológico, tais como as pestes e as guerras, bem como na disposição do rei ou do inimigo para agir de determinado modo.
Que toda a extensão desta determinação seja incompreensível aos olhos da mentalidade moderna é absolutamente compreensível, visto que passamos a considerar a Natureza como um elemento completamente avulso e à parte de um Todo onde a dimensão Metafísica e Humana também se encontravam entrelaçadas. É como observa Seyyed Hossein Nasr em seu livro O Homem e a Natureza, diretor da Academia Imperial Iraniana de Filosofia e professor de filosofia da Universidade de Teerã:
“Hoje, quase todo mundo que vive nos centros urbanizados do Ocidente sente intuitivamente a falta de alguma coisa na vida. Isto deve-se diretamente à criação de um ambiente artificial de onde a natureza foi excluída ao limite máximo possível. Mesmo o homem religioso, em tais circunstâncias, perdeu a noção do significado lógico da natureza. (...) Que se destruiu a harmonia entre homem e natureza é um fato que a maioria das pessoas admite. Mas nem todos percebem que este desequilíbrio se deve à destruição da harmonia entre o homem e Deus.(...) É esta razão porque se faz necessário começar nossa análise ocupando-nos primeiramente das ciências naturais e dos pontos-de-vista que dizem respeito ao significado filosófico e teológico das mesmas e, a seguir, das limitações a ela inerentes – e que são responsáveis pela crise que a aplicação e aceitação da visão de mundo destas ciências trouxeram ao homem moderno[10]”.
Que tudo isto tenha se tornado incompreensível é até compreensível, mas não aceitável. E não é aceitável justamente porque a perda da noção deste Todo Maior - em que os planos natural, humano e divino se encontravam entrelaçados – impediu não só que se apreciasse e se entendesse com razoável clareza cada um desses âmbitos isoladamente mas também que se aquilatasse o ônus e o prejuízo do fato destes conhecimentos terem caminhado e se desenvolvido como se estivessem desconectados uns dos outros – mas que, na realidade, nunca estiveram.
“Hoje, quase todo mundo que vive nos centros urbanizados do Ocidente sente intuitivamente a falta de alguma coisa na vida. Isto deve-se diretamente à criação de um ambiente artificial de onde a natureza foi excluída ao limite máximo possível. Mesmo o homem religioso, em tais circunstâncias, perdeu a noção do significado lógico da natureza. (...) Que se destruiu a harmonia entre homem e natureza é um fato que a maioria das pessoas admite. Mas nem todos percebem que este desequilíbrio se deve à destruição da harmonia entre o homem e Deus.(...) É esta razão porque se faz necessário começar nossa análise ocupando-nos primeiramente das ciências naturais e dos pontos-de-vista que dizem respeito ao significado filosófico e teológico das mesmas e, a seguir, das limitações a ela inerentes – e que são responsáveis pela crise que a aplicação e aceitação da visão de mundo destas ciências trouxeram ao homem moderno[10]”.
Que tudo isto tenha se tornado incompreensível é até compreensível, mas não aceitável. E não é aceitável justamente porque a perda da noção deste Todo Maior - em que os planos natural, humano e divino se encontravam entrelaçados – impediu não só que se apreciasse e se entendesse com razoável clareza cada um desses âmbitos isoladamente mas também que se aquilatasse o ônus e o prejuízo do fato destes conhecimentos terem caminhado e se desenvolvido como se estivessem desconectados uns dos outros – mas que, na realidade, nunca estiveram.
A gravidade desta situação intelectual se manifesta a olhos vistos na medida em que nem sempre a lei ou a regra que institui o que é melhor para o ser humano confere e se adéqua ao que é melhor para a natureza, e vice-versa, tal como nem sempre a lei ou a regra que institui o que é melhor para Deus se adéqua ao que é melhor para natureza e para o homem. Sendo assim, temos que considerar que a busca de uma lei integral que atenda simultaneamente à demanda destes três campos ou domínios tomados como distintos talvez seja a mais alta aspiração intelectual humana, presente na mente de boa parte dos eruditos da antiguidade mas que, tendo sido esquecida e banida quase que por completo do horizonte das investigações atuais, transformou a cultura da Era Moderna na mais grandiosa obra de esquizofrenia jamais realizada ao longo da história.
Tal situação se constitui, sem sobra de dúvida, num prejuízo para a Astrologia, cujo entendimento e cuja legitimidade ficam ameaçados na medida em que não se vislumbra e não se reconhece mais esse Todo Maior que englobava, num único conjunto, fenômenos de ordem natural, humana e divina; Todo Maior, este, que constitui o seu alicerce. Não sendo reconhecido mais o seu alicerce, que esperança pode haver de que a Astrologia seja reconhecida como um campo do saber, tal como era outrora?
Esperança alguma – e daí a importância de se investigar os laços que unem o âmbito divino ao âmbito natural e humano, tal como podemos depreender das reflexões de Walter F. Otto e de Seyyed Hossein Nasr. Contudo, é o que verificamos também nas palavras do filósofo Georges Gusdorf no capítulo que se segue, e quando voltamos a vislumbrar em que medida este céu – o céu astronômico – pode determinar eventos de escala natural e humana.
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[1] JASTROW, MORRIS. The Religion of Babylonia and Assyria. USA: Dodo Press, 2007.[2] TEOFANIA, O Espírito da Religião dos Gregos Antigos, Walter F. Otto, Ed. Odysseus, SP, 2006.[3] Obra citada, págs 33 e 34[4] Obra citada, págs 69,70 e 71.[5] Obra citada pág 71[6] Obra citada pág 86[7] Obra citada pág 112[8] Obra citada pág 123[9] Obra citada pág 43[10] O Homem e a Natureza, de Seyyed Hossein Nasr, Ed. Zahar, 1977.
2 comentários:
Edil,
Finalmente consigo fazer alguns comentários. Vamos lá.
Na introdução você afirma que a astrologia é insuspeitavelmente um saber primeiro, do qual todos os outros são derivados. Não sei até que ponto podemos afirmar isso tão categoricamente. Acho, na verdade, esse discurso suspeito. Não sabemos qual saber é primeiro ou segundo, e, ao fim e ao cabo, que diferença faz? Ser antigo ou primeiro não melhora a situação da astrologia, não a justifica como um saber sequer plausível, que dirá grandioso. Aliás, o que é um saber grandioso? Divino, sublime, enorme? Não sei.
Na sequência, você agrega a noção de totalidade ao seu argumento sobre a grandiosidade da astrologia. Sim, concordo que a astrologia seja um saber totalizante, que postula essa relação (seja lá de que tipo for) entre o céu e a terra, pretendendo dar sentido ao todo. É justamente nessa pretensão que reside a sua grandiosidade. Grandiosidade no sentido de tamanho: é uma pretensão enorme. Mas também acho que é exatamente aí que se encontram a beleza e o calcanhar de Aquiles da astrologia.
Sabe por que digo isso? Porque, a meu ver, a astrologia faz parte de uma ciência antiga (que vigorou até Newton e que até hoje se encontra não só na astrologia, mas também, de uma certa forma, na nossa experiência vivida), cujo raciocínio se baseia na semelhança, e na qual, como você disse, todos os saberes estão ligados. Não sei se podemos supor que todos apontam para a astrologia. Parece-me que todos (inclusive a astrologia) apontam para um entendimento de mundo em que as coisas se aproximam ou repelem conforme a simpatia, como bem nos ensinou a filosofia antiga. Isso é lindo, não é? Pois... Mas também é um problema a partir do advento da ciência moderna, cujo projeto não incluiu os saberes que se baseavam nesse sistema de pensamento por semelhança, inclusive o suposto pai disso tudo: Aristóteles.
Já lhe falei do texto do Foucault, "A prosa do mundo", que está no volume sobre sistemas de pensamento da coleção Ditos e Escritos, mas que é originariamente um capítulo dAs palavras e as coisas. Esse texto é ótimo para refrescar as nossas ideias.
Beijo,
Cristina
Não li nada do Edil. Só comento e fermento a resposta da cris.
Saber Primeiro
Concordo com a Cris. Acho que isso não existe. Nem o grandioso.
Só tem valor retórico em determinados contextos...
Totalidade
Cris, não acho que as tradições, práticas e saberes astrológicos sejam necessariamente totalizantes (dar conta e/ou sentido ao todo). Acho que a visão de algumas (ou muitas) tradições, as práticas de alguns (ou muitos) astrólogos e as compreensões mais sistêmicas dos saberes astrológicos são totalizantes - lamento. Estes casos são onipretenciosos.
Mas acho que a prática astrológica hoje em dia não precisa ser totalizante ou dar sentido aos todos (seja o universo ou a vida das pessoas em sua totalidade). Aliás, acho que um dos motivos da difusão das consultas astrológicas é que elas são plásticas, maleáveis, talvez líquidas (para usar um termo da moda). Ou seja, as pessoas dão sentidos diversos a acontecimentos pontuais e características pessoais em suas vidas em função das leituras de seus mapas. Mas isso independe do sentido geral que dão para suas vidas, ao mundo, ou ao universo (talvez a linha cármica seja uma excessão hoje em dia nesse sentido). Em geral, a astrologia não funciona como um grande sistema narrativo que dá sentido à vida das pessoas - não sei se antes funcionava assim... li muito pouco sobre isso, o que vcs me dizem?
No entanto, entre outras coisas, a riqueza ( e o calcanhar..) da linguagem astrológica está também em trabalhar baseada em analogias e com unidades holísticas, que são passiveis de estarem em todos os lugares e em nenhum ao mesmo tempo - analogamente, como os mitos (isso tem uma série de implicações e limitações, como todas linguagens) [isso merecia um desenvolviemento melhor de minha parte...]. Acho que ás vezes esse holismo é visto/chamado como totalidade ou totalizante. Não sei se foi o caso de vocês...
Mas o que vcs que atendem acham?
Universais
De qualquer forma, não acho muito fértil ficar falando e debatendo sobre ¨a astrologia¨. A rigor, essa generalização não existe. embora isso seja uma obviedade, na prática dos diálogos e debates, ela é esquecida. E esse esquecimento tem um custo.
Não foi por outro motivo que me referi acima à práticas, saberes e tradições, numa tentativa de trazer um pouco mais para o concreto, para as intercessões, onde de fato isso que chamamos genericamente de astrologia acontece. Entre pessoas, em contextos históricos, culturais, em relações de classe, cosulta e de mercado.
Acho que deve haver palavras mais interessantes e férteis para se dizer tudo o que disse acima. Esse considero um projeto interessante: nos focalizar e redescrever as palavras e termos através dos quais vemos, tocamos e moldamos essa entidade astrologia (isso é uma metáfora).
abs
paz
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